sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

168- Novo texto de Alfredo Santos

De omnibus est dubitandum

Alfredo Pereira dos Santos

Eu não conheço quem não tenha falado uma besteira na vida. A pessoa pode ser dessas de quem se diz ser genial, mas, procurando-se direitinho acha-se uma bobagem que ela tenha dito.

O problema é que bobagens ditas por pessoas de renome vivem sendo repetidas por pessoas anônimas que acham que tais bobagens, pelo fato de terem sido ditas por pessoas supostamente cultas e inteligentes, refletem algum tipo de sabedoria e conhecimento de causa.

Na verdade, aceitar como válido o argumento de uma pessoa baseado na autoridade daquela pessoa em outros campos, alheios ao campo do que está sendo dito, é uma conhecida falácia, que em lógica chama-se argumentum ad verecundiam. Ou seja, o Argumento da Autoridade.

Não faz muito tempo o doutor Dráuzio Varela, uma reconhecida autoridade em medicina, teceu considerações sobre a questão demográfica brasileira, que não é da sua especialidade. Conclusão: cometeu equívocos e destilou preconceitos.

Fosse o Drauzio um ilustre desconhecido a imprensa jamais daria destaque à sua opinião. Mas sendo ele quem é a mídia reproduz o seu pensamento. E como aqueles que leram ou escutaram o que ele disse entendem tanto de demografia quanto ele, formam opinião com base no que ele disse.

Atribuem ao Millôr Fernandes uma frase que, na verdade, é do Miguel de Unamuno. É a seguinte: "O xadrez é um excelente exercício que aumenta a capacidade de... jogar xadrez". Uma variante dessa frase é: "Quanto mais uma pessoa joga xadrez mais ela desenvolve a sua capacidade de... jogar xadrez".

A única utilidade de frases desse tipo é servir de argumento (falacioso) para algumas pessoas que não gostam ou tem algum preconceito contra o xadrez.

Ademais, ela insinua que o xadrez é perda de tempo.

Na verdade são duas frases equivocadas. Por várias razões:

1) O xadrez não é, necessariamente, um exercício. Pode ser um passatempo ou um vício (droga). E até um pretexto. Na Idade Média jogar xadrez era um motivo aceitável para que um cavalheiro entrasse nos aposentos de uma dama.

2) É falso que quanto mais uma pessoa jogue xadrez mais aumente a sua capacidade de jogá-lo. Uma pessoa pode jogar xadrez a vida toda sem que a sua compreensão do jogo e a capacidade de jogar aumente. No início do aprendizado a pessoa experimenta progressos mas como este progresso não é uma função crescente no tempo ele tende, assintoticamente, para um limite. É como a altura de uma pessoa. No início da vida a altura vai aumentando mas tem uma hora em que a pessoa pára de crescer. O quanto uma pessoa irá crescer dependerá de vários fatores, como alimentação, hereditariedade, etc. Mas, seja o que for, nunca iremos além de um certo limite.

3) Dizer que a prática do xadrez só serve para para "aumentar a capacidade de jogar xadrez" é falsa também. Façamos uma analogia. Será que a prática da natação só serve para aumentar a capacidade de nadar? Conheço gente que, quando começou a nadar, não passava de 200 metros por dia mas, com o tempo, chegou a 2000 metros. Talvez esses 2000 metros por dia fossem o limite para essa pessoa, mas não foi apenas a sua capacidade de nadar que aumentou. Ela perdeu peso, teve a sua resistência aumentada e, com melhor saúde e disposição, pode desincumbir-se melhor das suas atividades cotidianas, que nada tinham a ver com a natação. Então, quem poderia dizer que a natação só serviu para aumentar a capacidade de nadar?

Médicos dizem que os exercícios mentais são importantes na prevenção de certas conseqüências indesejáveis do envelhecimento. Ora, o xadrez pode ser um exercício mental (embora não necessariamente, como já vimos). E o velho que o pratique, motivado por tais argumentos, não estará em busca de um melhor jogo, mas tão somente querendo "dar trabalho" à sua mente. Vai usar o xadrez como exercício mas este não irá, necessariamente, fazer aumentar a sua capacidade de jogar embora possa lhe trazer benefícios.

Por outra lado, em muitos paises o xadrez é adotado nas escolas não para que os alunos "adquiram a capacidade de jogar mais e mais xadrez", mas sim porque os defensores do xadrez nas escolas argumentam que o xadrez desenvolve hábitos de concentração que irão ajudar os alunos em outras áreas, como matemática e idiomas. O que não exclui a possibilidade de um aluno revelar algum talento especial para o jogo e vir a ser um grande jogador, o que poderá lhe proporcionais vantagens adicionais.

O que tanto o Millôr quanto o Unamuno esqueceram é que existem efeitos colaterais quando se melhora a capacidade de fazer alguma coisa.

Quanto mais um técnico de manutenção de computadores conserta computadores mais aumenta a sua capacidade de consertar computadores. A essa frase aplica-se os mesmo critérios aplicados às anteriores. Sempre haverá um limite na capacidade de consertar computadores. Mas esse técnico terá, como resultado adicional de seu aprendizado, a possibilidade de ganhar dinheiro. Poderá também economizá-lo, consertando o próprio computador. Adquirirá prestígio, etc.

Muitas pessoas, de todas as idades, jogam xadrez pelo mundo a fora. Não me parece que elas façam isso porque são obrigadas. O mais provável é que o jogo lhe proporcione alguma espécie de prazer, lhes satisfaçam alguma necessidade interior. Para elas o jogo não é exercício nem elas estão preocupadas se vão melhorar o seu nível de jogo. Pelo contrário, conheço pessoas que sabem que chegaram ao seu limite no jogo e não se empenham mais em aprender. Elas querem simplesmente jogar. É isso o que importa: a pessoa fazer o que gosta, de uma forma socialmente aceita, sem prejudicar quem quer que seja.

Alguém que desenvolveu um bom nível de xadrez pode perfeitamente conquistar prestígio e dinheiro, dando aulas, escrevendo livros, disputando torneios. Então, é certo que o xadrez deu a esse alguém mais do que a capacidade de jogar.

Um peladeiro "perna de pau" de campo de várzea (que nem deve existir mais entre nós) sabe que, por mais que se empenhe, jamais chegará a ser um Pelé, um Garrincha, um Leônidas. E daí? Deverá ele desistir do jogo apenas porque a sua capacidade é limitada? A prática do futebol não lhe garantirá uma capacidade melhor de jogar. Porém, mais do que isso, lhe dará prazer. O mesmo vale para o xadrez.

Prazer, essa é a palavra chave que tanto o Unamuno quanto o Millôr não levaram em consideração.
Se fosse verdade que "quanto mais uma pessoa joga futebol mais ela desenvolve a sua capacidade de jogar futebol" então qualquer "perna de pau" chegaria a ser Pelè ou Garrincha.

Vamos generalizar a frase do Millôr e submetê-la à crítica da Lógica: "quando mais uma pessoa realiza uma dada atividade mais aumenta a sua capacidade de realizar aquela atividade".

Como já foi visto, essa é uma generalização que não se sustenta. Se é verdade que nos estágios iniciais do aprendizado de qualquer coisa um grande progresso pode ser verificado, este não vai se dar indefinidamente. A frase não é verdadeira, nem no caso geral, nem no caso específico do xadrez.

Quanto à questão da "perda de tempo" eu gostaria de dizer que se pode perdê-lo de muitas e variadas maneiras. Cito umas poucas:

1) Ficando horas e horas em frente à TV.
2) Jogando conversa fora na esquina.
3) Disputando o "jogo dos palitinhos".
4) Falando da vida alheia.

Não me parece que as pessoas que se dediquem às atividades acima mencionadas achem que estão perdendo tempo. O conceito é, pois, relativo. O que significa "perder tempo"? Os que estão interessados na produção acham que o que as pessoas mais fazem na vida é perder tempo. E as que vivem oprimidas pelo trabalho querem mais é perder tempo. De qualquer forma arrisco-me a fazer um comentário sobre a TV. Existem inúmeros trabalhos mostrando que TV não é coisa boa para as crianças. Para os velhos também não, pois pode acelerar certos processos degenerativos mentais associados ao envelhecimento. Imagino que o Millôr não diria que "quanto mais uma pessoa vê TV mais aumenta a sua capacidade de ver TV". E muito menos que a TV é um exercício mental. Mas se ele, quando fala do xadrez, está preocupado com o que ele supõe seja perda de tempo, então daria uma grande contribuição social se criticasse a enorme perda de tempo que ocorre quando se fica diante da TV longos períodos de tempo. Mas, ainda assim, correria o risco de ouvir alguém dizer "perda de tempo para quem, cara Pálida?"
O que, para uns, é perda de tempo, para outros é, pura e simplesmente, PRAZER.
Frase por frase, eu fico com a do Goethe: "O xadrez é a ginástica da inteligência".

Encerro com outra frase, que também não é minha.

"As pessoas deveriam aprender Lógica nas escolas para que não tivessem que raciocinar pois, se o fizerem, é fatal que raciocinarão errado".

Bertrand Russell, in Behaviorismo e Valores

Um comentário:

Anônimo disse...

Mais um texto irretocável (que venham muitos outros, é claro !) do grande A. P. Santos, refutando soberanamente algumas velhas bobagens que ainda são ditas sobre o xadrez.
Abraços

R. Mercadante