Os feudos dos privilégios e o xadrez
Alfredo Pereira dos Santos
Durante muito tempo criticou-se no Brasil a chamada reserva de mercado da informática. Os seus defensores alegavam que era para proteger a indústria brasileira. Os que a criticavam diziam que ela dificultava o acesso a produtos estrangeiros, melhores e mais baratos.
A questão, que hoje parece encerrada, era polêmica e nunca cheguei a formar um juízo definitivo sobre ela.
Mas as reservas de mercado continuam existindo e, em alguns casos, me parecem coisa legítima, mas, em outros, nem tanto. Acho natural que medicina e engenharia sejam exercidas por pessoas habilitadas para o exercício da profissão. O que pressupõe a existência de um diploma. Mas há que se ter uma medida para as coisas e, em alguns casos, algumas circunstâncias especiais falam mais alto.
Por exemplo, o Zanine Caldas fez belos e funcionais projetos de casas e, no entanto, nunca teve diploma de arquiteto. Deveriam tê-lo impedido de fazer as casas que fez? O Carlos Lacerda, que foi deputado e governador do antigo Estado da Guanabara, exerceu a profissão de jornalista e, no entanto, não tinha nenhum diploma de curso superior. O Paulo Francis, que escreveu em diversos jornais e revistas, fez crítica teatral, escreveu livros, também não tinha diploma. Deveriam os dois serem preteridos, nas redações dos jornais onde trabalharam, por alguém que tivesse diploma, mas nem de longe tivesse a inteligência, a cultura e o domínio do idioma que eles tinham?
Dogma é coisa perigosa. Foi pelos seus dogmas que a Igreja mandou Giordano Bruno para a fogueira e pelo mesmo caminho iria o Galileu se, a tempo, não tivesse se retratado. Mesmo estando Galileu certo e o Cardeal Belarmino e os dominicanos errados.
O Brasil está cheio de professores não diplomados. E isso porque não os há em muitos lugares. Então, lança-se mão do que há disponível, o que é melhor do que nada. E não há nessa situação nenhuma originalidade. O pedagogo e educador Lauro de Oliveira Lima, num dos seus livros, nos relata que na Inglaterra, na época da guerra, houve falta de professores e que, para suprir a deficiência, pessoas da comunidade foram convocadas para ensinar às crianças. Naturalmente que pessoas alfabetizadas, em condições e disponibilidade para ensinar, como se encontram em muitos lugares. No campo da saúde foi feito coisa parecida na China, durante alguns anos da revolução, com os chamados “Médicos dos pés descalços”. Eram pessoas sem diploma de medicina mas que orientavam as comunidades quanto a certas medidas que deveriam ser tomadas para prevenir as doenças.
Essas reflexões me ocorrem agora, depois da recente lei que prega o ensino do xadrez nas escolas, quando começo a ouvir falar de pessoas que acham que os professores da disciplina deverão ser formados em educação física. Bom, achar qualquer um pode. Mas quem achou, achou mal, pois há muito tempo eu não ouvia tão rematada tolice.
Ora, meus amigos, se o xadrez de fato for introduzido em todas as escolas, já será difícil achar, em quantidade suficiente, quem o ensine, quanto mais se houver a exigência adicional de ter diploma de educação física. Pode ser que queiram introduzir o xadrez no currículo dos cursos de educação física para então habilitá-los a ensinar o xadrez, assim como existem os habilitados para ensinar natação e basquete. Mas, por enquanto, ao que eu saiba, nada disso existe. O que vão fazer, então? Ficar esperando que apareçam os que tenham a habilitação que eles acham necessária?
Antigamente, quando a educação era privilégio de uns poucos, certas questões, relativas à pedagogia e à didática eram ignoradas. Os nobres e as famílias ricas contratavam sumidades para ensinar as coisas aos seus filhos. O Euclides foi ser professor do rei de Siracusa e o Descartes da rainha da Rússia. Os avós do Bertrand Russell contrataram uma espécie de governanta alemã para que ele, criança, tivesse contato com o idioma alemão, que ele aprendeu rapidamente, já o tendo dominado aos cinco anos. O pai do Wittgenstein, um dos homens mais ricos da Europa, levou um dos filhos para tomar aulas de música com o famoso compositor e pianista, Felix Mendelssohn, dizendo-lhe o seguinte: “não precisa lhe ensinar nada, deixe apenas ele respirar o mesmo ar que você respira”. Então, meus amigos, é aquela velha história do “junta-te aos bons que serás um deles”, que a sabedoria popular já revelou. Um amigo meu, que estudou nos Estados Unidos e jogava basquete me contou que só o fato de estar perto das grandes equipes, de estar perto dos grandes jogadores, de ouvir as conversas deles, enfim, “respirar o mesmo ar que eles”, já lhe foi de enorme valia e que aquele convívio ajudou-o a melhorar o próprio jogo.
Com o ensino universal, abrangendo todas as classes sociais, não se poderia ter sumidades em quantidade suficiente para atender a todos. Então foi preciso que se criassem as séries, os programas e os curricula. Então cada professor, em cada série, ensina aquilo que lhe cabe ensinar. O Aluno aprende e passa para o nível seguinte, com outros professores, outras disciplinas, outros currícula.
Com o xadrez há de ser feita a mesma coisa. Um conteúdo básico das coisas a serem ensinadas e a maneira adequada de se fazer isso. O xadrez na escola não constitui um fim em si mesmo. Ele entra como coadjuvante no processo educativo. E não há que se inventar a roda, pois muito já se escreveu e disse sobre isso.
E também não é nenhum “bicho de sete cabeças” a exigir o concurso de graduados e pós-graduados. Asseguro-lhes que a imensa dos jogadores brasileiros, bons ou maus jogadores, aprenderam o jogo com familiares que não tinham diploma de educação física e de pedagogia. Muitos aprenderam em clubes, com professores contratados para essa finalidade, da qual se desincumbiram muito bem sem que, para isso, jamais tivessem passado sequer à porta de um curso de educação física.
O ex-campeão mundial Botvinnik, professor de Karpov e Kasparov, tinha diploma de engenheiro e não de educação física.
Ficar então insistindo nessa tese é dogma, tão ridículo quanto inaceitável. Coisa de Cardeal Belarmino.
E quanto às especificidades do chamado “xadrez escolar”, se é que tal coisa existe, pois me parece também que com isso estão querendo criar uma reserva de mercado, estabelecendo uma espécie de feudo onde alguns vão se achar no direito de pontificar, excluindo outros que podem e querem colaborar, também não é nada que não possa ser aprendido e entendido pelas professoras das escolas que saibam jogar xadrez ou por qualquer enxadrista que tenha a boa vontade, a disponibilidade e o desejo de querer contribuir. Sem prejuízo dos formados em educação física. Não se os quer discriminar, mas não há porque lhes conceder privilégios ou exclusividade.
Um amigo meu, infelizmente já falecido, era um forte jogador de xadrez e formado em educação física. Eu via nele qualidades para ser um bom professor de xadrez, não tanto pelo diploma que ele tinha mas pela sua capacidade e compreensão do jogo. Tirando esse amigo, que nem mais entre nós está, não tenho conhecimento de uma quantidade significativa de formados em educação física, pelo menos no Rio de Janeiro, que possa fazer alarde de extraordinários resultados como professores ou organizadores de xadrez. Nesse caso, criar uma reserva de mercado para eles seria um privilégio que o atual estado do xadrez brasileiro não pode admitir. Mais do que isso, seria um entrave desnecessário e, por isso mesmo, inadmissível, para o nosso xadrez.
Estou certo de que grande parte dos enxadristas brasileiros, tendo ou não diploma de qualquer tipo, está preparado e, mais do que isso, motivado, para ensinar (ou aprender como ensinar) o jogo de xadrez nas escolas, nos clubes ou na Conchinchina. Não vamos discrimina-los nem criar-lhes barreiras ou obstáculos. Muito pelo contrário, vamos convocá-los, pois estão fazendo falta.
Rio de Janeiro, 24 de novembro de 2008
6 comentários:
Não é de hoje que admiro sua forma de escrever. Nunca havia comentado, elogiado, e não poderia tardar a fazê-lo. Tenho certeza que muitos apreciam também. Parabéns Alfredo, você "manipula" nossa língua portuguesa com excelência. Deve ter muitas experiências enxadrísticas para nos contar.
Um abraço, Silvio.
Parabéns ao Maia também por contribuir com a divulgação de textos de qualidade!
Grande Alfredo !
Concordo plenamente com vc. Quero, também, a sua autorização para que possa incluir seu texto no meu blog www.migchess2005.zip.net. Tive um professor deste tipo > Sebastião da Rocha Pita > ele não tinha formação superior, no entanto, foi o melhor porfessor de Fisica que eu tive. Ele possuia um certificado de NOTÁORIO SABER, coisa que já não existe e que eu invejava solenemente. Quanto ao xadrez, costumo dizer que o melhor instrutor de xadrez, para crianças é o Tufic Derzi, que como enxadrista é fraquinho. No entanto, cresce quando ensina e o nosso Diego di Barardino o teve como primiero instrutor. Também, o próprio Diego passou por outros que nem se parecem com professores de EF. Mas, o poder de alguns pode fazer conforme foi feito com Galileu. Temos que estar preparados para enfrentá-los, especialmenteno campo das idéias.
Muito bom o seu texto e um abraço.
Migueis.
Caro Senhor
Sua Bandeira é a Nossa Bandeira. É muito mais fácil e apropriado, transformar em professores de xadrez os enxadristas (os que ainda não são), do que ensinar o Xadrez para os Formados em Educação Física e depois estes virem a suprir as necessidades.
O Brasil necessita urgentissimamente do Xadrez, em todos os currículos escolares desde a pré escola até o terceiro grau.
Parabéns pelo belíssimo texto.
Se não for incoveniente, estarei divulgando-o no Site da FBX.
Abraços.
Wilter Pereira Vieira
Diretor de Desenvolvimento do Xadrez Escolar da Federação Baiana de Xadrez.
Prezado Miguéis e demais amigos,
O Alfredo pediu para eu informar que autoriza a publicação dos textos dele em outros blogs e sites de xadrez.
Grande abraço.
Concordo totalmente, com as idéias expressadas no excelente texto do Amigo e Professor A P Santos, que esta me devendo uma visita.
Uma coisa que a maioria não sabe é que comecei a jogar xadrez na Gama Filho, e o professor inicial era o Mequinho, que pra mim nada adiantava, pois dava aulas que talvez hoje fosse interessante mais na época eu não conseguia entender nadinha, não lembro bem, mais acho que eu tinha menos de 10 anos e achava as aulas chatas, até que resolvi parar, tempos depois um amigo do meu pai o saudoso Delucas que jogava sempre comigo me levou para conhecer o A P santos que nessa época era o professor de xadrez da Gama Filho e estranhamente nas suas aulas eu conseguia sempre aprender algo, e embora o mestre achava que eu não tinha talento ( e não devia ter mesmo) nos primeiros torneios que joguei, fui campeão e até hoje consegui manter a escrita de ganhar todos os torneios de idade que joguei, Infantil ou Cadete , Senior´s e o Adulto ( nomezinho feio pra torneio) e quem sabe em breve, o Veterano.
Imitando o mestre, Joguei Índia do Rei e cheguei a tentar jogar Inglesa , mais a Najdorf me persegue até hoje.
A excelente pedagogia do A P Santos, com suas aulas simples e dinâmicas, é a grande responsável pela paixão que tenho pelo xadrez.
E guardo até hoje com muito carinho um livrinho verde de anotar partidas que ganhei do Alfredo ( com dedicatória) em 8 de outubro de 1976, meu primeiro premio como enxadrista.
Agora vocês já sabem a quem culpar por eu estar tentando jogar até hoje.
MF Eduardo Arruda
Prezado Alfredo;
Aguardamos vc em Cabo Frio para que possa ajudar a melhorar nosso nível de jogo...
Não sou favorável a exclusividade por quem fez Educação Física em ministrar aulas de xadrez.
Entretanto, existem leis que regem a nossa educação e elas determinam que para ser professor é necessário formação específica.
Não tenho dúvidas sobre os benefícios do xadrez à criança ou ao jovem. Por isso considero que o enxadrista que queira ver o xadrez no ambiente ESCOLAR deve se preparar adequadamente para compreeender e entender não somente o xadrez, mas o processo formativo integral.
Hoje a escola necessita de menos "experts" e mais generalistas. O saber não está fragmentado. O conhecimento é um só. Xadrez na escola requer o domínio e o conhecimento de xadrez, obviamente, e também história, psicologia, filosofia entre outros.
O ensino da música que andou ausente durante muito tempo do ENSINO REGULAR deve retornar em breve e não é por que o sujeito é músico que poderá lecionar. Se não for LICENCIADO, não trabalha.
A discussão é complexa e acho que estamos muito longe de esgotá-la.
Saúdo a todos que comentaram e parabenizo o Alfredo e o Maia pela iniciativa.
Abraços;
Anderson Morgado
PEDAGOGO/ENXADRISTA
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