Hoje resolvi homenagear Alfredo Pereira dos Santos ou o AP Santos, figura com uma indubitável história voltada para o xadrez carioca. Conheci Alfredo na UERJ, no 6° andar da Matemática e Estatística, lá pela decada de 80. É um intelectual de jeito simples, típico carioca, que formou gerações de praticantes da nobre arte, alguns grandes campeões, como Eduardo Limp e Sadi Dumont.
A melhor forma de apresentar Alfredo é por meio de seus textos. A seguir reproduzo (com autorização)uma entrevista que ele fez com Carlos Lyra. Esse texto também está no sítio da Fexerj mas acho que ele está muito "oculto" lá e coisas boas e de qualidade devem ser ofertadas de modo mais fácil e explícito. Espero divulgar mais neste blog outras reflexões do mestre Alfredo.
Vamos lá!
CARLOS LYRA E O XADREZ
Alfredo Pereira dos Santos
No Brasil a ligação de artistas famosos com o jogo de xadrez, quando existe, não é muito visível, ao contrário do que ocorre em outros países, donde nos chegam fotos de famosos praticando o jogo, como John Wayne, Marlon Brando, Woody Allen, Maddona, Charles Chaplin, Arnold Schwazenneger, Milos Forman, Sting, Bonno, e muitos outros.
Já ouvi falar que os atores Antonio Fagundes, Paulo José e Hugo Carvana jogam, mas não tenho evidências disso. No meio musical o único que eu conheci foi o maestro Lindolfo Gaya, já falecido, que participava dos torneios da federação de xadrez. Fora esse, não me lembro de ninguém.
Recentemente, contudo, eu soube que o Carlos Lyra joga (ou jogava) xadrez.
O Lyra, para quem não sabe, é um dos mais importantes compositores brasileiros e tem o seu nome indissoluvelmente ligado à Bossa Nova embora, ao longo da vida, tenha trilhado outros caminhos musicais.
Carlos Lyra nasceu em 1937. Em 1958, ano considerado como o do lançamento oficial da Bossa Nova, eu tinha 15 anos e ele já era maior de idade, com 21. Seis anos fazem uma diferença enorme quando se é jovem. Na perspectiva do tempo essa diferença se atenua e posso dizer que fomos contemporâneos de um tempo que, em muita gente, deixou saudades, porque foi um momento de esperanças, de auto-estima do povo brasileiro e com grande movimento cultural. Tempo das "sete vacas gordas da cultura brasileira", como diz Lyra. Eu morava no Posto 4, em Copacabana, num prédio ao lado da Galeria Menescal, onde morava o Roberto Menescal, parceiro do Lyra, e o seu irmão, Ricardo. Eu só os conhecia de vista, pois a minha turma era de adolescentes e a deles de gente grande.
Lyra e Menescal resolveram montar uma academia de violão, instrumento que passou a fazer sucesso entre os jovens cariocas da zona sul, e para isso usaram o apartamento de um amigo, José Paulo, que gostava muito de jogar xadrez e mantinha na sua gaveta tabuleiro e peças, que usava sempre que surgisse uma oportunidade.
Conheci o José Paulo em meados da década de 60 e jogamos muitas partidas, numa academia que foi instalada na rua Maestro Francisco Braga. O Reyson Gracie era um que participava desses encontros. Mas nunca tive contato cm o Lyra e nunca tive, até pouco tempo, conhecimento de que ele sabia jogar xadrez.
E foi para saber mais sobre essa ligação do Lyra com o jogo que eu entrei em contato com ele que, gentilmente, concordou em me dar um depoimento e responder algumas perguntas, por e-mail.
APS - Quando você foi apresentado ao xadrez? E por quem? Alguém da sua família jogava?
Lyra - FUI APRESENTADO AO XADREZ POR UM TIO QUE TAMBÉM ME ENSINOU A JOGAR DAMAS. TINHA 11 OU 12 ANOS. CADA VEZ QUE EU GANHAVA, ELE ME PRESENTEAVA COM UMA BARRA DE CHOCOLATE DA VAQUINHA.
APS - No seu tempo de garoto não se encontrava livro de xadrez com facilidade no Rio de Janeiro. Como você ficou conhecendo os grandes jogadores, como Lasker e Capablanca? Você reproduzia as partidas deles?
Lyra - EU TOMEI CONHECIMENTO DESTES MESTRES, NOS ANOS 50, ATRAVÉS DE LIVROS IMPORTADOS DA ARGENTINA E DOS ESTADOS UNIDOS. HAVIA UMA MISTURA DE MÚSICA COM XADREZ. UM VIOLONISTA CLÁSSICO CHAMADO AFRÂNIO, JOGAVA MUITO COMIGO. MAIS TARDE, MEU ARRANJADOR, HUGO BELLARDI, TAMBÉM FOI MEU PARCEIRO DE XADREZ. QUANDO TOQUEI COM STAN GETZ, O PIANISTA DELE, NADA MENOS QUE CHICK COREA, ERA MEU PARCEIRO DURANTE AS TURNÊS ARTÍSTICAS.
APS - Dizem que só existem crianças-prodígio em xadrez, música e matemática, uma vez que estas são atividades nas quais o que contam são a inteligência e o talento e não a experiência vivida. Pelo que você relata, na sua página, a música entrou cedo na sua vida e teve uma influência preponderante. Nesse contexto, que importância teve o xadrez para você? Você acha que ele o ajudou, de alguma forma?
Lyra - É POSSÍVEL, PELO ESFORÇO DE RACIOCÍNIO E A CONCENTRAÇÃO. SE EU TIVE ALGUM TALENTO PARA A MÚSICA, MEU TALENTO EM XADREZ ERA MÉDIO E EM MATEMÁTICA, NENHUM
APS - Vínculos com a música e o xadrez você tem, embora em proporções distintas. E com a matemática, qual era a sua relação com ela? Quando garoto, o que você imaginava ser, quando adulto?
Lyra - MINHA PRIMEIRA VOCAÇÃO FOI DE SER MOTORNEIRO DE BONDE. DEPOIS, PENSEI EM IR PARA A MARINHA COMO MEU PAI. MAIS TARDE, PENSEI SERIAMENTE EM ARQUITETURA, CHEGANDO A FAZER CURSOS PREPARATÓRIOS. TUDO ABANDONADO EM FAVOR DA MÚSICA.
APS - Os seus colegas de colégio jogavam xadrez? Quem eram os seus parceiros habituais?
Lyra - NO COLÉGIO NÃO TIVE NENHUM COLEGA INTERESSADO EM XADREZ. MUITOS EM MÚSICA.
APS - Em que fase da vida você mais praticou o jogo? Qual é a sua relação com ele, hoje? Você acompanha o que se passa no mundo do xadrez?
ANTIGAMENTE, ATÉ SOZINHO, EXPERIMENTAVA O FASCÍNIO DAS DIVERSAS ABERTURAS CLÁSSICAS., SENDO A MINHA PREDILETA, A RUY LOPEZ. HOJE, PRATICAMENTE NENHUMA, EXCETO A SAUDADE. A ÚLTIMA NOTÍCIA QUE PERCEBI FOI A MORTE DE BOB FISCHER.
APS - Não é incomum que músicos gostem de xadrez. Prokofiev era um deles. Aqui no Brasil tivemos o caso do maestro Lindolfo Gaya a quem, aliás, eu enfrentei numa partida de campeonato. Quando ele morreu eu fiquei triste e frustrado ao mesmo tempo. Triste pela perda e frustrado porque ele se foi antes de me dar a revanche, já que me venceu na única partida que jogamos. Mas antes que eu enverede pelo caminho das reminiscências, faço logo a pergunta: nos ambientes artísticos que freqüentou o tema xadrez costumava aparecer. Você conheceu muitos artistas-enxadristas?
Lyra - JÁ RESPONDI ANTERIORMENTE PARTE DISSO MAS O GAYA FOI BEM LEMBRADO PORQUE ERA MEU AMIGO E EU COSTUMAVA IR A CASA DELE QUANDO JOGÁVAMOS ALGUMAS PARTIDAS, DAS QUAIS EU NÃO VENCI UMA SEQUER.
APS – Na sua página na Internet fiquei sabendo que do seu avô paterno você herdou o gosto pela literatura. O que você lia, quando garoto?
Lyra - MEU AVÔ ERA POETA LAUREADO PELA ACADEMIA MARANHENSE DE LETRAS E TAMBÉM PARCEIRO DE GASTÃO FORMENTES. O PRIMEIRO LIVRO QUE LI FOI SPARKENBROKE, DE CHARLES MORGAN. DEPOIS VIERAM TODOS OS OUTROS E MAIS ILUSTRES: STHENDAL, FLAUBERT, ANATOLE FRANCE, BALZAC, PROUST, CELINE, JOYCE E OUTROS TANTOS E COM CERTEZA MACHADO DE ASSIS E GRACIALIANO RAMOS.
APS - Você disse, em depoimento, que "...o cinema brasileiro acabou, como acabou a música brasileira, depois dos 60". Então eu vou fazer uma pergunta que parece nada ter a ver com o xadrez mas tem, indiretamente, porque está ligada ao Marcel Duchamp, que não era músico mas artista plástico e gostava muito do jogo. Você conheceu o Otavio Paz, que escreveu sobre o Duchamp. Aqui no Brasil o Affonso Romano escreveu que "o Duchamp deu um xeque-mate na arte e, desde então, ela ficou paralisada". Eu fiquei achando que o Affonso tinha usado a expressão "xeque-mate na arte" apenas pela circunstância do Duchamp jogar xadrez, e que se ele jogasse tênis teria dado "uma raquetada na arte", ou algo que o valha. Eu queria saber se a arte ficou paralisada como um todo ou se a paralisação afetou apenas algumas das suas manifestações. O Affonso sugere que fiquemos aguardando um livro que ele está escrevendo, onde vai esclarecer tudo. O Duchamp morreu em 1968 e eu fico me perguntando se a arte de Alfredo Volpi ficou paralisada, se a sua, a do Tom, a do Chico, a do Niemeyer, a do Theo de Barros e a de um monte de gente ficou paralisada. Poderia o Duchamp ter causado esse estrago todo?
Lyra - NÃO ACHO. DUCHAMP JÁ É UM SINTOMA DA DECADÊNCIA DA ARTE E DA CULTURA EM GERAL. SE DUCHAMP FOSSE BOXER, VOCÊ IMAGINA O QUE NÃO SERIA, NA LINGUAGEM DO BOX, AQUELE URINOL FAMOSO. A DITADURA MILITAR DEU UM XEQUE-MATE NA CULTURA BRASILEIRA, INDEPENDENTEMENTE DA DECADÊNCIA VERIFICADA NA CULTURA UNIVERSAL.
APS – A minha opinião não vem ao caso, já que quem está dando o depoimento é você. Mas emito-a para justificar a minha pergunta. Acho que a aceitação generalizada de coisas como funk, hip hop, sertanojo (não é erro de digitação, é sertanojo mesmo e não sertanejo) não depõe a favor da inteligência musical (e talvez geral) de quem quer que seja. E não aceito o argumento, como ouvi num programa de rádio, de que algumas dessas músicas encerram mensagens de conteúdo social , de denúncia das nossas mazelas, pois eu apelo logo para o Mário Quintana: "Uma boa causa não salva um mau poeta".
Lyra - SOB SUAS ÚLTIMAS OBSERVAÇÕES, ACHO QUE VOCÊ FOI MUITO COERENTE E EU CONCORDO EM GÊNERO, NÚMERO E GRAU. A TÍTULO DE SUAVIZAR COM UM POUCO DE HUMOR, RONALDO BÔSCOLI, MEU PARCEIRO, DIZIA, MALICIOSAMENTE, QUE A ESPINGARDA DE DOIS CANOS FOI INVENTADA PARA MATAR DUPLAS SERTANEJAS.
E com esse toque de humor do Carlos Lyra encerra-se o depoimento. Vocês observaram as influências literárias que ele teve? Isso mostra que a sua qualidade como compositor não é coisa que surgiu do nada. Ela resultou da combinação da cultura geral com a técnica adquirida em anos de prática. Essa é a receita: noventa por cento de transpiração e dez por cento de inspiração.
Creio que essa receita vale para quem queira ser músico, enxadrista, ou qualquer outra coisa.
Para saber mais, acesse a página do Carlos Lyra na Internet:
http://www.carloslyra.com/
Sobre a Bossa Nova, leia o livro do Ruy Castro:
Chega de Saudade – A história e as histórias da Bossa Nova (Companhia das Letras, 1990)
2 comentários:
Maia, espero que tenha recebido as dicas para postar diagramas. Senão, me avise!
Comentando o post, joguei várias partidas com o Maestro Severino Araujo (Orquestra Tabajara) no posto 12 do Leblon. Ele assobiava sua "Espinha de Bacalhau" desconcentrando os oponentes durante as partidas.
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